MEMÓRIA COMO LUGAR DE ORIGEM
Kika Sena
Como se não faltasse ar,
respire.
Ainda existe ar aqui dentro e também na superfície.
Feche os olhos e veja o mar na sua frente:
Mergulhe no mar.
Imagine a distância que era correr contra o tempo, avanço, avançada, evoluída.
Como se desse para correr contra o tempo.
Como se centro fosse lugar primeiro. Não. Lugar primeiro é o mar, gente. A margem, que é o começo e o fim de tudo.
A beira
O que transborda.
Mergulhe de novo.
É preciso voltar no tempo: memória:
Paisagem em movimento que carrega respingos do que sempre foi ancestralidade.
Antes de nascer já era e não tinha como ser diferente.
O ar que corre no pulmão de uma preta é prova viva: teimosia.
E todos os detalhes do que existe: o sangue, a pele, os poros, o suor, as palavras também são.
Teimosia é onde começa a continuação da história, que se não fosse ela, ancestralidade seria qualquer coisa contada em pele branca, passada em branco, embranquecida para se comemorar o incomemorável:
espetacularização do sofrimento da vida preta.
E nunca seria raiz.
[respire]
Tudo começa no bê – a – bá.
Na língua materna, que de materna só tem o nome.
Tudo começa no pê – a – pá
tri. a.
Como se gente preta fosse sempre objeto de pesquisa e sujeito da exploração. E de que valem os votos, as vozes, os acordos, a nossa palavra?
Pátria, como separação da qualidade da gente, como se sempre fosse preciso medir a melhor, a mais bonita, a mais adequada, a com maior passabilidade.
Minha avó não tinha. Minha mãe e minha tia também não, nem a outra tinha, nem a outra, nem a outra.
Não têm.
Não existe grau de sabedoria maior que a ancestralidade. E isso reside na escuta, na escolha das ervas pra o banho, no chá, na criatividade pra se montar um prato pra janta com o mínimo.
Que criança preta de barriga cheia é fartura.
Antes do bê – a – bá era o olhar, a cara fechada, a brabeza.
A bendita teimosia.
O choro.
Que se não fosse hoje, quem sabe a história não seria outra. E ainda estamos aqui: falando do básico, do básico, do básico, que pra gente sempre foi e sempre será o pão nosso de cada dia: o modo como construímos memória.
Ainda existe ar aí dentro?
[respire].
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