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A Obra de Jéssica Nascimento

IRENE

Conheci Irene primeiro nas bocas — era mãe antes de ser mulher. Mãe Irene foi envelhecida às pressas, tinha filho pra esquecer que tinha feito. Minha Nossa Senhora acudia todo fim de mês para não virar com necessidade. E todo ano podia esperar que chegava mais um pedindo nome. Era gente raspada que não acabava mais, e a coisa não lhe dava um sossego. Chegaram a me contar que a coisa não lhe dava um sossego. A língua do povo é tão comprida que chega na intimidade.

Eu, quando vi Irene, admirei. Chegou em mim uma mulher tronco, sem sorriso, mão pesada, dessas que dão ordem e a gente se vira. Irene era elegante e sábia.

Coloquei Irene no meu altar particular. Ofereci trabalhos, oferendas, dei flores, moedas e cantei pra ela algumas vezes. Chorei falando baixo, pedindo um pouco de escuta. Fiquei com vergonha de pedir muita coisa e passei a agradecer:

— Obrigada! Valei-me Irene. Me socorre.

Irene tornou-se meu segredo. Criei colares com as suas cores favoritas, elegi um dia da semana pra ser só dela, e nesse, passei a evitar as estampas que não eram do seu gosto. No dia de Irene, passei a cobrir meus cabelos para segurá-la no pensamento, evitava brigar e dizer palavras em alto volume.

Irene tinha que estar feliz comigo.

Comprei uma estátua de Irene, enfeitei de papel crepom e desfilei em cortejo pela cidade. Pessoas passaram a me acompanhar na devoção e eu explicava com rigidez a história de Irene para que soubessem quem fora aquela mulher.

Com o tempo começaram a me dizer que Irene era a água, era luz, era terra, era fenômeno da natureza. Eu que sabia onde a conversa iria chegar, tentava negar, dizia: — Irene é mulher, é gente que existiu. Mas Irene virou vaidade, virou dinheiro, virou ganância...

Até levaram minha bonequinha, enfiaram no museu. Eu gritei e ninguém deu assunto. Antes fizeram o demônio de Irene, logo ela que era negra, que não cultuava o pecado. Colocaram Irene e o Cristo na mesma salada. Deram um nome de santa para Irene. Tentaram disfarçar a desaprovação que tinham por ela. Pintaram Irene de branco e fingiram demência. Aquela coisa toda lá.

Eu defendi Irene e a escondi no quintal de casa. Quando a coisa melhorou, fiz um barracão e um quartinho pra ela. E mesmo escondida, era uma delícia dançar no chão batido pra Irene. Dançávamos eu e meus filhos — gente que nem eu — que sabia de Irene.

Irene me cavalgava de repente.

Quando Irene chegava, sentia o mar bravo dentro de mim. Apagava consciente e ela montava. Depois de tudo, molhada de suor, me sentava na cadeira com a cara assustada, bebia água e respirava fundo minha ignorância: — Eita Irene, o mundo é maior do que eu pensava.


Jéssica Nascimento




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