Compomos porque somos compostas
Curadora Marcela Bonfim
Atualmente, refletir a fotografia tem sido a mim, um modo de observar as potentes dimensões e abrangências por onde o fluxo imaginário toca, estaciona e volta caminhar; indo de lugares à sentidos; até chegar a uma criação; quando surge mais uma ideia, transformar fotos e textos, em uma verdadeira rede de geração de conexões, empregabilidade e acolhimento, sensibiliza Fernanda Piccolo; quando toca nas possíveis formas de dignificação de uma imagem; remetendo-nos também aos violentos estgmas e tipificações sociais, políticas e afetivas; hoje; completamente expostas e saturadas como em imagens de aparelhos celulares; disponibilizadas nas redes sociais, testemunhando a violência com que dois seguranças brancos desferiam contra a vida de Beto, um homem negro, assassinado dentro de um supermercado de Porto Alegre, movimentos acompanhados por Gabriela Rabaldo; em pleno século XXI, onde ser habitante de um corpo negro, estratégico e favelado, como enfatiza Boneka dos Santos, é ser também peça-chave da violenta engrenagem do capital.
Entretanto, antes de tudo, discorrer sobre fluxos imaginários, é inclusive perceber as formas (implícitas) de como acontecem os movimentos de produção e reprodução dos estigmas; sobretudo, quando acessamos práticas colaborativas de criação que observam as entrelinhas das relações de poder que afetam nosso processo de comunicação, as articulações do cotidiano e a forma como produzimos conhecimento no mundo, milita Ana Lira; indo em direção do direito de acessar lugares de idas e vindas, de passagem, mas que também é um lugar de permanência histórica e cultural, mantém nossa memória viva, nos conecta e nos dá um outro contexto sobre tempo, nos faz pensar que é preciso voltar no passado e buscar saberes que são fundamentais para construir uma nova possibilidade de futuro, um futuro onde estaremos vivos e contando nossas próprias histórias; ressignifica Gisa Oliveira; abrindo espaço à reflexão de Carina Viana sobre a única certeza que há é a da travessia.
De tudo isso, a imagem como um plano vital, é também o acesso à consciência das possíveis e potentes formas de poder que a imagem carrega; inclusive, por ser composta de energias capazes de transitar tempos, componho com verde, terra, raiz, ar, refazimento; respira Elane Abreu de Oliveira; e discorre sobre o atual chão de cacos de um clima de incertezas e de desalento; de tempos sombrios; no lamento de Renata Simões Cavalcanti; observando inclusive que não devemos nos impedir de sonhar; emanando forças à lideranças como Rafa Anace; juventude indígena, fotógrafa e artista registrando o cotidiano de sua aldeia e de sua luta; representando suas próprias imagens; tanto a partir do campo coletivo, quanto nesse lugar de estar em isolamento e ver a partir dessa inversão um mundo doente, porém poético pela sombra, pelo desenho formado numa realidade criada a partir da luz, que é indiferente e desigual diante de uma grande parcela da sociedade; resgata Irene Almeida.
A imagem vital, então, como organização do próprio fluxo imaginário, e vice-versa; é como optamos fluir neste trabalho feito à peças e escalas de uma mesma composição; buscando por vezes proximidades; e por outras, distâncias; tudo, conforme o tempo de cada uma de nós, mais nossas extensões no campo das relações; num passo à passo; acessado de nós para nós mulheres-narrativas; devolvendo-nos o encontro com múltiplas corpas e estórias de mulheres em comunhão com a natureza tecendo a rede da vida e criando o cenário perfeito para um novo tempo, onde retorna-se ao essencial, desenha Elza Lima; enquanto Paula Sampaio, lança ao ar [...] Bichos esculpidos em troncos. Troncos virando gente. Contornos de uma natureza afogada, que parece um mapa da viagem humana por esse mundo. Será que a morte tem grito? ... Sem dúvida, o fluxo imaginário é, por si, o aspecto mais autêntico de uma imagem.
Igualmente ser sapatão e estar nesse lugar do corpo em liberdade, corpos que se cruzam, estamos de boa, queremos estar de bem nesse mundo, no fim o amor vencerá, reivindica Gê Viana, enquanto desfruta dos agradáveis fluxos que têm desejado às suas recomposições visuais, também fluente no campo dos fazeres de Pri Melo nas Artes Visuais com a técnica de lambe-lambe, abrindo portais e janelas por trás das paredes de concreto que atravessam meu cotidiano; igualmente a artistas-ativistas como Tapixi Guajajara; Dj Nanny Ribeiro e Profana ao Mel; corpos negros vivos e em movimentos cotidianos, múltiplos modos de existir em resistência e gerar histórias que unem ancestralidade e futuridade; celebra Simone Ricco.
Mesmo no desespero de uma nova perspectiva, o reflexo faz a realidade, repensa Amber Luz; aproximando o próprio corpo a uma espécie de profundeza, sublinhada por Edilene Souza em sua fotografia; lado à lado com Joana Gabriel; principalmente pela busca de fontes de acesso à ancestralidade onde encontramos abrigo e cura, nos tornando resilientes na desobediência diária; fontes enxergadas em abundância no fluxo de imagens como no exemplo das festas afro brasileiras, seus brincantes dançam para agradecer favores, pagar promessas, confraternizar; abraça Thaís Rocha; compondo o que já é composto pela própria natureza; sendo nós parte dessas composições; particulares e coletivas; porque assim somos; compostos inclusive às múltiplas formas de compormos; pois compomos porque somos compostas; sobretudo de tempo, mas também da pressa; como se a passagem do caos à paz estivesse nas mãos da velocidade; da impaciência; deixando o caminho vazio e a morada sem memória porque tudo vai passar, reinicia Marcela Bonfim...
Comments